Divulgação científica em Museus de Ciência

       Ciência e tecnologia são conceitos chaves na estruturação do conjunto complexo que é o mundo contemporâneo. Para Marta Loureiro, a ciência moderna constitui um dos principais subsídios para a construção de verdades e, por sua vez, a tecnologia transforma nosso cotidiano rapidamente (2009, p.345). Nesse contexto, frequentemente conceitos como ‘vulgarização’, ‘divulgação’, ‘popularização’ aparecem associados aos debates que alimentam os canais de comunicação da ciência e tecnologia frente à sociedade (LOUREIRO, 2009, p.346).
           No século XIX, o termo “vulgarização científica” estava associado à ação de discorrer sobre ciência para os leigos e, no século XX, esse termo entrou em desuso em favor de outro, que fazia referência a várias instâncias da comunicação da ciência: “divulgação científica” (VERGARA, 2008, p.137). A divulgação científica pode ser definida pelo “emprego de técnicas de recodificação de linguagem da informação científica e tecnológica objetivando atingir o público em geral e utilizando diferentes meios de comunicação de massa” (LOUREIRO, 2003, p.91). Nesse contexto de lugares de comunicação, os museus de ciências constituem espaços de divulgação científica, tendo em vista que transferem aos “não iniciados informações especializadas de natureza científica e tecnológica” (BUENO, 1985, p.1422 apud LOUREIRO, 2003, p.91). Cury considera que a
comunicação museológica é uma denominação genérica que pode ser dada às diversas formas de extroversão do conhecimento em museus, como artigos científicos versando sobre estudo de coleções, catálogos, materiais didáticos em geral, vídeos e filmes, palestras e oficinas. Segundo essa autora, todas são estratégias de comunicação, mas as exposições são a principal ou a mais específica forma de comunicação de um museu (CURY, 2005, p.35 apud CHELINI; LOPES, 2008, p.209).
         Nesse sentido, é clara a função do “museu de ciências na divulgação científica e que, nesse processo, é reservado importante papel às exposições” (CHELINI; LOPES, 2008, p.208). Para executar essa tarefa, o museu recodifica as informações relacionadas aos instrumentos e/ou objetos científicos e tecnológicos que foram musealizados. É justamente a ênfase conferida ao objeto musealizado um dos principais diferenciais da instituição museológica frente aos demais meios de divulgação científica (LOUREIRO, 2003, p.91), principalmente com relação aos centros de ciência. Deve-se levar em consideração também que o museu é um espaço que se inter-relaciona com o indivíduo e a sociedade através do processamento e exposição dos bens culturais (LOUREIRO, 2003, p.88). Nesse sentido, as exposições constituem um elemento importante na relação entre o museu e sociedade (CHELINI; LOPES, 2008, p.206). A exposição museológica constitui uma prática essencial e determinante do museu. De maneira geral, essa instituição expressa, através de aparatos teóricos e técnicos, a construção de representações (LOUREIRO, 2003, p.89). 
          Aprofundando a relação entre os objetos (compreendendo-se aqui como objeto os instrumentos científicos) expostos, apenas “apresentar um conjunto de objetos em um local público não é o suficiente para torná-los compreensíveis. Por outro lado, dar sentido não é diretamente proporcional à quantidade de textos apresentados em pôsteres, cartazes e até catálogos” (CHELINI; LOPES, 2008, p.208). Os significados dos objetos variam ao longo do tempo e espaço e, nessa perspectiva, também possuem diferentes significados de acordo com quem os observa. Esse objeto em exposição não se relaciona apenas com os outros objetos, expostos, mas também
[...] com seus colecionadores e curadores, [...] com seus públicos. Os espectadores observaram e reagem ao objeto, e estas respostas (e os seus vestígios) são sintomas da relação entre o objeto e observador (ALBERTI, 2005, p.568-569).
         Assim sendo, o objeto de museu pode ser visto como um prisma através do qual se pode ver a experiência dos diferentes públicos da ciência (ALBERTI, 2005, p.561). Dentre as várias funções que os museus de ciência possuem, Ana Delicado destaca as “várias funções sociais como, por exemplo, investigar e difundir a cultura científica, conscientização para a preservação do ambiente, gerar o debate sobre questões científicas controversas e a formação de especialistas” (DELICADO, 2004). Para Cury, quando o museu passou a ser visto como um canal de comunicação que demandava inteligibilidade de suas exposições, este foi também o momento em que ocorreu uma 
[...] mudança na concepção de público: de passivo passou a ativo e, finalmente, criativo; isto porque foi possível ao público mudar a sua atitude de contemplação passiva para um comportamento mental ativo e, por fim, a uma atitude de (re)criador do discurso museológico (CURY, 2006, p.2-3).
        A evolução da importância do público também é uma questão levada em consideração na classificação desenvolvida por Panese para compreender as dinâmicas no âmbito das exposições em museus de ciência. Segundo ele, existem três regimes museológicos: espelho epistêmico, regime de experimento e regime de interesse. No espelho epistêmico, observa-se uma visão descontextualizada dos experimentos científicos mais importantes. Nesse regime, os
museus e exposições trabalham como livros de ciência e se tornam “bibliotecas de espécimes naturais”; ou uma sucessão de eventos científicos muitas vezes organizados para ilustrar e reforçar a ideia do “progresso do conhecimento” (PANESE, 2007, p.34).      
     Logo, essa narrativa busca passar uma sensação de verdade absoluta e vem sendo gradativamente substituída. Em contrapartida, o regime de experimento procura modificar a relação entre o visitante e os conteúdos científicos na medida em que a exposição atrai o visitante, o qual é visto como agente a realizar experimentos como se estivesse em um laboratório. Nessa abordagem, o objetivo não é evidenciar o resultado científico ou teorias gerais, mas sim o que Jean Perrin denominou de “a ciência em curso” (PERRIN, 1937 apud PANESE, 2007, p.36). Nesse sentido, frequentemente os centros de ciência abandonam coleções de objetos históricos e autênticos e se apropriam unicamente de recursos e ambientes especiais com demonstrador-animador. A crítica a esse regime consiste na limitação da “demonstração”, onde as disciplinas geralmente utilizadas são as “ciências espetaculares” (física e química) (PANESE, 2007). Além disso, esse regime expõe versões idealizadas e então menos realistas do trabalho científico, que não são realmente capazes de produzir um entendimento preciso das condições complexas e contextuais de tal prática (PANESE, 2007, p.36). E, por último, o regime de interesse que constitui uma tentativa de realizar uma abordagem contextualizada da ciência. Este visa levar em consideração uma faceta esquecida pelos demais regimes, que é a relação entre a posição museológica e a opinião pública. Nesse regime     
os objetos, os conteúdos e os recursos museográficos são então usados, por exemplo, para criar dissonâncias cognitivas, ideológicas ou sociais nas mentes dos visitantes e para acompanhá-los em seu próprio processo de dar significado às coisas (PANESE, 2007, p.36).
      O objetivo do regime de interesse é diminuir a autonomização (quando o objeto fala por si só) dos objetos científicos, constituindo, assim, sua heteronomização. A heteronomização pode apresentar diversas interpretações sem que haja uma hierarquia definida, tendo por objetivo ressaltar a flexibilidade de interpretação dos objetos em exposição sob a óptica das disciplinas (PANESE, 2007, p.38). A preocupação com interpretações reduzidas realizadas por algumas instituições museológicas é questão apontada por Heizer. Ela afirma que, frequentemente, os museus que detêm coleções de instrumentos científicos e máquinas são subordinados a uma lógica de disciplinas compartimentalizadas, o que pode gerar um reducionismo para o pesquisador quando este se depara com um instrumento que pertence a mais de uma área de conhecimento. E sendo assim,
tais instituições podem vir a produzir análises anacrônicas, assim como reforçar a ausência, por parte dos conservadores de museus, de uma reflexão mais ampla sobre a sua prática com acervos desse tipo [...] (HEIZER, 2006, p.59).
      Em suma, o regime de interesse constitui uma estratégia museológica que busca mudar os antigos discursos de “narrativa da verdade“ para “narrativa de opinião” e, desse modo, abrir a ciência para discussão crítica. A importância da criação de uma opinião do cidadão para um posicionamento consciente frente à ciência também foi destacada por Jacomy como sendo uma das mais importantes funções do museu de ciência. Dentro da tarefa do museu de ciência como um formador de opinião e difusor de informação, a interatividade é considerada uma ferramenta importante para a transmissão da mensagem (CHELINI; LOPES, 2008, p.230). Nesse sentido, os estímulos sensoriais podem proporcionar reações emocionais, e estas, ao trabalharem em conjunto com o racional, levariam a uma melhor compreensão da exposição. Assim, a ampliação do leque de sentidos estimulados poderia ser um catalisador de todo o processo (CHELINI; LOPES, 2008, p.230). A possibilidade de interação deve, entretanto, estar integrada à exposição porque, do contrário, ela pode distrair o visitante, fazendo-o perder a linha de raciocínio apresentada na exposição. Nesse sentido, o visitante pode ser levado a explorar um elemento museográfico interativo sem refletir sobre o que está fazendo. Só porque o visitante participa de uma interação não significa que a
[...] educação científica esteja realmente acontecendo, podendo ser simples reflexo da excitação provocada pela liberdade de exploração, e defende que uma boa opção seria subordinar elementos divertidos à atenção e ao aprendizado, uma vez que, para ele, no museu, a diversão deve ser um meio para se atingir um objetivo, o aprendizado, por exemplo, e não o objetivo em si (SCREVEN, 1993, p.12 apud CHELINI; LOPES, 2008, p.231).
        Uma abordagem dos temas científicos evidenciando os aspectos sociais e culturais possibilita um melhor entendimento da ciência como produto da sociedade aproximando, dessa forma, a ciência e o visitante. Cury vai além, ao afirmar que os temas escolhidos para serem musealizados e os discursos expositivos devem ser elaborados a partir do cotidiano dos receptores. Para ela, a atividade de contextualizar os objetos museológicos tem sentido quando se contextualiza o tema com cotidiano das pessoas. Não é suficiente expor contextualizando tendo por base apenas a origem e trajetória do objeto, mas, sim, quando se estabelece vínculos entre culturas, entre grupos e entre pessoas (CURY, 2006, p.3).


Referências:

Tibúrcio, Bianca Mandarino da Costa. Instrumentos científicos, um desafio para os museus : estudo de caso das comissões de Luiz Cruls ao Planalto Central do Brasil. 164 f. : il. Color. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio, 2013. Orientadora: Moema de Rezende Vergara. 

LOURENÇO, Marta C. O patrimônio da ciência: importância para a pesquisa. Museologia e Patrimônio, Rio de Janeiro, v.2, jan./jun, n.1, p.47-53, 2009. Disponível em:http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/view/45/25
Acesso em: 01 de mai. 2012.

VERGARA, Moema de Rezende. Ensaio sobre o termo “vulgarização científica” no Brasil do século XIX. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 1, n.2, p.137-145, jul-dez 2008.

LOUREIRO, José Mauro Matheus. Museu de ciência, divulgação científica e hegemonia. Ci. Inf., Brasília, v. 32, n. 1, p.88-95, jan./abr. 2003.

CHELINI, Maria-Júlia Estefânia; LOPES, Sônia Godoy Bueno de Carvalho. Exposições em museus de ciências: reflexões e critérios para análise. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.16. n.2. p.205-238. jul.- dez 2008.

CHELINI, Maria-Júlia Estefânia; LOPES, Sônia Godoy Bueno de Carvalho. Exposições em museus de ciências: reflexões e critérios para análise. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.16. n.2. p.205-238. jul.- dez 2008.

DELICADO, Ana. Para que servem os museus científicos? Funções e finalidades dos espaços musealizados da ciência. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra. 2004.

CURY, Marília Xavier. Marcos teóricos e metodológicos para recepção de museus e exposições. UNIrevista. Vol. 1, n° 3, julho 2006. Disponível em: http://www.unirevista.unisinos.br/_pdf/UNIrev_Cury.PD; Acesso em: 15 nov. 2012.

PANESE, Francesco. O significado de expor objetos científicos em museus. In: VALENTE, M. E. A. (Org.) Museus de ciência e tecnologia: interpretações e ações dirigidas ao público. Rio de Janeiro: MAST, p.31-40, 2007.

HEIZER, Alda. Museus de ciências e tecnologia: lugares de cultura? Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v.4, jan./jun. n.1, p.55-61, 2006.

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